25 de março de 2014

Brasil


O mar se revoltou
A tempestade cortou o céu
e uma gaivota piou no ar


Os negros são açoitados
A garota é vendida na estrada
A igreja assina uma lei
e um poeta é morto


A sinhazinha é emparedada viva
O senado sorri à toa
O imperador grita por liberdade
e um amor é impedido


O garoto pede moeda no farol
O outro dispara o fuzil pela primeira vez
A mãe dorme no chão
e um livro é queimado


A justiça já enxerga
O governo já respira
A polícia já pacifica
e um alguém tem fome


As ondas rebentam na praia
Choveu um pouco de silêncio
e fez-se história de todos nós.



Natalia Iorio

Rio, 25 de março de 2014.

16 de março de 2014

Nomeação


Tudo emudeceu. Tudo se silenciou. O calor já não era bastante para refletir-se no asfalto e pulsar nos ânimos dos que por ali passavam. Há uma estátua suja à frente, uma mulher coberta por um manto amarelado e doentio. Outra mulher cospe no chão o resto de sua tônica recém bebida. A outra lata repousa no banco. Quieta.

Sobressaltada, ela levanta, contempla o riacho. Gira em círculos, encosta os punhos nos quadris, olha o céu, abaixa o pescoço. Olhar no horizonte.

Estátua! A garotinha pergunta o que era a mulher parada à beira do gramado.
A outra atravessa o meandro da observação entre o estático e o movimento, escapa do limite da intimidade, foge da visão distante.

“Olha um instantinho as minhas coisas ali?” - Um caderno, papéis dentro de uma pasta lilás e a outra tônica mergulhada em sol.

Sai sorrindo, desaparece em poucas árvores e retorna. Agradece a olhadela. Deixa a bolsa, volta para o riacho. Pega a bolsa, passa pela mulher parada. Nem a olha. Vai embora. Suas coisas já me pertencem. Há um cuspe seco no chão rodeado de formigas. Estômago doce.

Duas mulheres anônimas. O que será que pensam?

Deve ser dor de estômago. Muita tônica. Esperam por alguém. Um encontro não planejado ou um filho ausente.

Há manchas de tabaco nos dentes, cabelos pintados, unhas cintilantes. Cor de amêndoa.

Ela espera por uma sombra e por uma criança. Já posso até mexer em seus papéis e saber de suas dores físicas que continuam espalhadas pelo banco. A criança está chegando e um terceiro obrigada atravessa o ar de pássaros.

Nem estômago nem cigarros. A tônica esquentou, a sombra pousou na estátua e a mulher traz consigo uma criança de fartos seios, vestido indiano vermelho, cabelos castanhos e um leque azul meio a uma conversa lenta e plasmada.

E naquele único vermelhar do dia e de um céu quase azul e quase amarelo, tudo se torna amêndoas. A claridade, o cheiro, a rugosidade do chão e a lentidão do vento. O dourado que se esconde na pintura rachada da parede e do alto dos coqueiros. Amêndoas e cigarro.

A criança de dimensões gigantes recusa a bebida quente e borbulhante, a garotinha curiosa bate o tamanco enquanto corre dos pais e a conversa entremeada pelos papéis e prontuários médicos e de ressonância magnética é abafada por risadas irônicas, injeções, remédios, procedimentos e domingos.

Tudo se resolveria com dores de estômago e um pouco mais de tabaco nos dentes, mas a mulher amarelada continuaria parada em sua postura etérea e juvenil. Permaneceria lá com seu manto sujo e sua doença amarelada esperando a garotinha curiosa que não sabe como chegar ao lugar marcado para o encontro.

Natalia Iorio

16/03/2014 – 14:53 

12 de março de 2014

O que não se deve ler

E hoje eu acordei com aquela vontade ininterrupta de escrever a vida. Aquela maldita vida que se perderia no meio de uma frase, no ínterim de uma vírgula.

Maldita! 

Sabia eu que assim que começasse a entoar qualquer canto ou qualquer melodia de qualquer esquina, poste de luz, poça de calçada ou silhueta que mora na rua, ela iria se perder.

E foi-se. Esvaiu-se como o homem sem rosto que pede por comida ou a criança com sorriso torto que se afugenta ao sol de meio dia.

Eu quis mesmo escrever sobre mim mesma perdida no sorrateiro pesar de viver, num outro canto ou num outro mundo. Quem sabe dizer o significado dessas vontades passageiras e lúgubres?

Quem saberia dizer onde vive meu amor ou em que ombro ele repousa adormecido?

Não saberia.

Qualquer "qualqueres" que tentei decifrar nesta manhã irá se prenunciar numa noite clara e eclipsada por outros pensamentos e memórias. As descrições se tornam válidas quando preenchidas de significado, mesmo que abstrato e amórfico. 

É hora de saber parar de escrever para que as poucas palavras não fiquem mudas de não-significado ou um qualquer-significado.

Natália Iorio
12/03/2014 - 10:55