29 de agosto de 2010

O maldizer político

Há acontecimentos que deixam mais evidentes certas ações que as pessoas, de um modo geral, tomam em seus cotidianos. Nesse ano de eleições é muito comum ver a população descontente e risonha com as desbravadas campanhas eleitorais. As pessoas resmungam, falam mal e com os olhos vidrados de furor defendem um candidato, ou gritam que é ladrão um outro. Tem os descontentes com tudo e que dizem não acreditar mais na política e nos políticos, tem os desistentes que preferem o voto nulo, os que querem uma revolução dos eleitores e clamam por um movimento de todos votaram em branco, tem os que defendem certos candidatos veemente e entram em debates com a voz exclamada de excitação e de justiça.


Nesse caleidoscópio de eleitores, há os que odeiam a política (como se isso fosse possível) numa onda apolítica, há os que defendem seus candidatos pela afinidade com certo partido, há os simpatizantes e os que semeiam o discurso “gosto da política, mas não dos políticos”, no caso essa frase foi usada por mim durante muito tempo.

A princípio é complicado afirmar que exista alguém que odeie política ou algum ser humano, dentro de uma sociedade fundamentalmente estruturada, que se defina como um ser apolítico; vale dizer, que não podemos viver numa comunidade, numa república, num sistema de leis e regras, num movimento intenso e equilibrado de coerção social sem que sejamos seres políticos.


Em seu termo mais geral, política é todo sistema de regulação da sociedade, no nosso caso, a regulação de uma república federativa que se fundamenta no cumprimento de certas normas e leis construídas para o bem comum de todos - mesmo que supostamente - e que são coordenadas e impostas pelos famosos políticos. A figura do político, atualmente, mais parece uma caricatura de um vilão de desenho animado, o homem mau em que deve ser punido por ser a fonte de sofrimento dos bonzinhos da história.


Infelizmente, nesse cenário tão simples e caótico, ao mesmo tempo, nota-se uma outra contradição: nós próprios, quero dizer, a maioria da população pensa e age como se o comando e a responsabilidade social, cultural, econômica e de bem estar - para não citar as muitas outras responsabilidades - dependesse única e exclusivamente daquela caricatura injustamente deformada de terno e gravata que fala em palanques clamando pelo nosso voto.


Digo injustamente, pelo simples fato, que devemos saber os nossos deveres também dentro de uma esfera socialmente arquitetada que se chama, justamente, sociedade; e digo que esses deveres e compromissos não são apenas com as nossas casas, nossos filhos e pais, nosso trabalho e nossos semelhantes mais achegados. Corriqueiramente, temos a obrigação de que uma vida digna seja atribuída a todos os seres que vivem no mesmo planeta que o nosso: devemos não roubar, não devemos cometer injustiças e sair impune e, simplesmente, devemos assumir as leis e suas punições. Parecem partes de um sermão religioso as últimas palavras, mas a síntese disso tudo é que não adianta apontarmos o dedo e gritar de raiva contra injustiças que nos acomete sem equilibrar as nossas próprias injustiças, as nossas deliberações em que saímos sem o cumprimento da justiça, as nossas mentiras e os nossos “jeitinhos brasileiros” de viver.


Se uma revolução pudesse ser feita, eu sugeriria uma revolução de pensamento e conduta, em que todas as pessoas pudessem colocar as mãos em suas cabeças e pudessem rever todos os pormenores ditos injustos que foram cometidos na correria da vida moderna. Aliás, a modernidade e a fatalidade da vida corrida e instantânea também levam a culpa de muita coisa que não, necessariamente, deve ser culpa desses fatores.


Não estou, também, de modo deliberado defendendo os políticos corruptos e desonestos que tanto vemos nos noticiários; mas, ao contrário, esses sim merecem a imagem figurativa de vilões de terno e gravata. A necessidade que vejo, hoje em dia, é de uma reciclagem de pensamento e de falsos valores em nossa sociedade. Não adianta negarmos a nossa essência política, somos seres que nascemos e aceitamos ser políticos no instante em que nos declaramos como cidadãos pertencentes a uma ordem social vigente em certo espaço e em certo tempo; trocando por miúdos, declaramos e nos responsabilizamos pelo nosso caráter político quando aceitamos que pertencemos e dependemos de uma república e isso, no caso brasileiro.


Mesmo que meu discurso lembre uma metáfora determinista e conformista com os fatos, ela é exatamente o oposto a isso. Minhas palavras aqui parafraseadas brigam por uma sociedade mais atenta e mais consciente dos termos que nos cabem resolver e aos que, mesmo que pareçam impossíveis de se resolver, aos poucos e com atos individuais se constroem ótimas bases coletivas de ética; o que quer dizer que, a responsabilidade individual de cada homem adquire um reflexo coletivo em toda a sociedade.


Termino com um breve assunto que recinde nas utopias que nada mais são do que desejos sublimes que na ação não são realizáveis de uma hora para outra. Uma utopia só se torna verdadeira e praticante no instante em que colocamos a mão na massa por meio desses pequenos, porém, grandiosos atos que citei acima. Não adianta sonharmos com uma teoria sem ao menos realizar o essencial e o imperfeito, primeiramente. As impecáveis nuances em uma obra de arte nada são sem as simples cores e as simples técnicas do artista; o certo seria dizer, que nada adianta ficarmos a sonhar com um mundo perfeito sem começarmos por um começo, seja ele qual for.


Por fim, como numa oração silenciosa e barulhenta, clamo por uma mudança valorativa do sentido político em nossas vidas, peço que essa pequena palavra que transmite tanto poder de uma única pessoa, pare de ser posta como algo maléfico para o bem estar da vida social, peço que agilmente, uma revolução sem holofotes e tambores seja realizada na conduta, no andar e na fé de cada cidadão dessa pátria amada.

Amém.

22 de agosto de 2010

Linha 51: Santo Bertoldo

O tempo estava ameno naquela cidade pequena e aparentemente pacata, que em outros termos, significava que era um lugar bom e ruim para se viver. Uma cidade descomedida pela industrialização falida e pelo capitalismo voraz do desprendimento. O ônibus da vila baixa da cidade estava cheio. Era meio dia de um dia de setembro. A população contida no transporte se resumia a estudantes de ensino médio e idosos. O motorista ouvia o último lançamento musical de uma dupla sertaneja e acompanhava a letra com alguns grunhidos desafinados.


As pessoas conversavam, mas um tom de voz era mais enaltecedor do que os outros:
- Você viu o que o Chaveirinho vai fazer aqui se for eleito como deputado?
- Não vi não Dona Clementina.
- Ele vai fazer um espaço para jogos da terceira idade: um lugar para o dominó, outro para o truco e outros lá, tem gente que gosta de sinuca né?
- Ah! Eu gosto bastante viu!
- Então, mas ele disse que ia fazer isso... É alguma coisa para a gente que já é velho né, deve ficar bacana...


Dona Clementina e Seu Fabrício se empolgavam com as notícias políticas e analisavam as promessas como algo de bom para a vida deles. A cidade promovia muitos encontros e festas para a terceira idade e faltava algum evento organizado para os jogos. Vários aposentados findavam tardes jogando truco e dominó nas praças da cidade sem nenhum apoio do prefeito ou de algum vereador.


Os dois continuaram a conversa:
- Acabei de voltar do hospital. Ando com uma dor de cabeça que só vendo viu! Fiquei umas duas horas esperando o médico e ele me atendeu mal ainda. Ninguém mais tem paciência com a gente, nem o que é do nosso direito.
- É... Tenho medo de um dia ter que depender do governo... Sempre um descaso com os velhos.


Um outro senhor que estava sentado próximo aos dois parecia se perturbar com o andar do diálogo. Carregava uma sacola de supermercado em uma das mãos enquanto se segurava com a outra buscando algum equilíbrio no momento em que o ônibus passava por um buraco no asfalto. Abaixava a cabeça nervosamente e esfregava as têmporas suadas e vermelhas:


-Meus senhores? Perdão interromper a conversa de vocês – e sua voz era exaltada neste momento – mas diga-me uma coisa: esse cara aí, o Chaveirinho, além desse lugar para se jogar aí, o que mais ele vai fazer? Vai fazer alguma coisa para a saúde? Ou para diminuir essa buraqueira das ruas?
Dona Clementina, em sua ingenuidade e com um pouco de medo do tom do senhor que bruscamente a interrompera em sua conversa com Seu Fabrício, respondeu francamente:
- Não sei não... Só ouvi ele dizendo sobre os lugares certos para os velhos jogarem...mas já fiquei feliz, pelo menos um deles se preocupou com a gente. O senhor não acha isso não?


O senhor das têmporas vermelhas torceu a boca, levantou-se, olhou para cima, deu sinal para descer no próximo ponto, ajeitou as sacolas de compras nos braços e disse antes de descer:


- É assim que continuamos mesmo, sem entender o que acontece, até com nós mesmos. Aplaudimos uma obra aqui e ali e nos esquecemos dos nossos direitos mais viris. Culpamos os médicos e as ruas cheias de buracos... - o ônibus estava freando e ele meio cansado e desanimado, apenas finalizou – assim continuamos.


O senhor desceu os degraus do ônibus e caminhou com os olhos espremidos pela luz forte do sol que o golpeou. Dona Clementina e Seu Fabrício olhavam para aquela criatura e franziam o cenho em desagrado. Dona Clementina resmungou algumas palavras incompreensíveis e, desarmada de objeções, continuou sua conversa falando sobre a vizinha que a acordava todos os dias tarde da noite com o som alto do carro.




15 de agosto de 2010

O mundo encantado de Carol

Carolina estava terminando o seu quinto livro da série Harry Potter. Tinha 16 anos e era irritantemente perfeccionista. Sua inteligência e dedicação aos estudos era, de certo modo, um incômodo para todos. Seus pais a achavam estranha e, por vezes, a humilhava pelas suas ideologias sobre seu pequenino mundo real. Seu quarto parecia um mundo dos próprios livros de ficção que lia: uma cama arrumada com lençol lilás, as paredes decoradas com desenhos de sua autoria, fotos de seus ídolos e muitos livros. Uma janela iluminava seu modesto aposento, atribuindo-lhe uma claridade enevoada pelo tempo frio e sem sol que jazia lá fora.


Carol tinha um gato e queria ter uma coruja também, assim como Harry. Estava triste aquele dia, brigava muito com sua mãe; e seu pai que era seu porto seguro, por vezes, estava ausente. As brigas conjugais faziam parte de seu silêncio dentro daquele quarto tipicamente infantil.


Sonhava em tocar piano e morar longe de seus parentes. Tinha poucos amigos e os que conseguiam, eram embalados pelas suas conversas intelectuais e absorvidos pela sua carência de humanos. Afugentava os poucos colegas que conseguia pela sua preocupação excessiva e pela falta de assunto supérfluo. Não desgrudava de sua nova amiga Fernanda. As duas tiravam notas boas no colégio e eram quietas demais para o restante do mundo. As duas estavam lendo Harry Potter, só que Carol estava um livro a frente que Fernanda e esta, estava ansiosa pelo seu presente de aniversário que conteria o tal livro.


As duas encaravam o clima nebuloso pela janela de Carol, que continuava triste. Ela contava que já tinha terminado o quinto livro e que chorara muito no fim. Fernanda ficou quieta contemplando os montes que se formavam no horizonte do céu sem nenhum traço de luminosidade. A garoa fina caia nos telhados e a nostalgia embriagava ainda mais seus sentidos.


Carol tinha pintado seus cabelos de vermelho há um ano, num ato de rebeldia contida. Seus cabelos tinham um corte conservador: eram na altura dos ombros e dispunha de uma franja perfeitamente reta. Nunca namorou, nem de mentirinha. Seus óculos redondos e grossos aprofundavam as poucas espinhas que pintavam sua testa branca. Costumava pintas as unhas curtas de preto.


Contemplando a mesma cena que Fernanda presenciava de sua janela, Carol disse:

- Eu fiquei triste com o final do livro, mas já conto os meses para o lançamento do último livro... Dizem que ele morre...

-Ah! Não me conte nada! Ainda não li.

- Não vou contar não. Sabe, eu penso que um dia vou encontrar todos os personagens dos livros que li e de todos aqueles que não li e não lerei nunca.

- Você acha isso mesmo? – perguntou Fernanda com alguma incredulidade sobre os desabafos de sua amiga.

- Acho. Acho sim. Eu acredito mesmo, é que quando morremos encontramos todos eles, seja onde for... No céu talvez, se bem que não acredito no Catolicismo.


Fernanda não sabia o que dizer, preferiu continuar olhando para a paisagem que não se modificara, exceto por algumas nuvens negras que se formavam ao longe.

- Um dia sei que vou encontrar todos eles e acredito muito nisso. – afirmava essas palavras com os olhos e os pensamentos longe daquele lugar frio e triste. Suas mãos apertavam umas as outras e sua boca se comprimia numa raiva e numa oração silenciosa pela realização de seu desejo mágico.


Não disse mais nada pelos dez minutos seguintes. A tarde se findou na mesma lentidão em que começara. Carol esperaria os próximos livros e os próximos personagens que conheceria após sua morte. Ela vivia mais em si mesma do que no mundo em que persistia em ignorar: o seu mundo real. Na mágica das páginas em que lia, ela se embalava numa canção sem fim de sonho e ilusão.

8 de agosto de 2010

Nos confins desse Brasil

Estava anoitecendo. Era sexta feira na grande São Paulo. Os carros andavam pouco e paravam muito, num ritmo aborrecedor. Os ônibus e metrôs estavam abarrotados e os pedestres caminhavam apressados. A violência e as multidões faziam parte do cotidiano de cada ser humano naquele lugar. O ar poluído e pesado era o odor da normalidade para aquelas vidas.

A mulher caminhava na calçada da rua de seu escritório. Iria encontrar seu namorado de um mês no próximo quarteirão. Eles se conheceram num restaurante próximo durante seus horários de almoço. Roberto a esperava em seu carro próximo a um ponto de táxi enquanto fumava pacientemente seu cigarro. O dia havia sido calmo. Bruna desviava dos buracos da calçada muito irritada. Seu dia havia sido constrangedor.

Os dois se encontraram com seus receptivos humores. Foram para o apartamento dele. Na cozinha, entre uma taça e outra, a discussão começou. As palavras se tornavam mais enérgicas quando Roberto a derrubou no chão com um golpe em seu rosto. A razão se transfigurava e, entre gritos de desespero de Bruna, e os socos abafados em seu corpo, a vida dela havia se desmanchado em sangue pelo chão frio da cozinha de Roberto.

Após alguns dias, a polícia estava atrás de Roberto, e a mídia rondava seu apartamento e seguia seus passos 24 horas por dia. Logo, os programas de televisão que ocupavam toda a programação vespertina das pessoas, tomavam um maior destaque com análises incrementadas sobre o assassinato, milhares de entrevistas com advogados e delegados eram repetidas incansavelmente várias vezes em um único dia.



Uma semana se passou e Roberto mal podia trabalhar direito, em sua consciência sabia que tinha perdido a cabeça aquela noite e que com a cozinha respingada de sangue, ele dera um jeito de esconder o corpo moribundo de sua namorada. Pegara um saco plástico de lixo, a enrolara no material...


Seu celular tocou e seus pensamentos se foram com o toque estridente que denunciava a chamada de seu advogado:

- Roberto, meu querido! Eu não disse que comigo tudo se resolve? Consegui agendar uma entrevista com você no Fantástico.

- e isso é bom? Você acha que tenho retórica o suficiente para convencer as pessoas?

- claro que tem né. Você é um empresário tão bem sucedido. Vai se sair muito bem.


Conversaram por mais alguns minutos acertando os detalhes da gravação da entrevista. Olhou pela janela de seu escritório e viu alguns repórteres descansando no muro do edifício. Sabia que quando saísse de lá teria que encarar uma multidão de perguntas e gritos de “assassino” pela calçada.



Era meio dia de uma terça feira em Brasília. O sol estava a pino e o calor escaldante refletia no ânimo das pessoas pelas ruas. Alguns senadores discutiam emendas de algumas leis que mal sabiam do que se tratavam. Os papéis apenas recebiam suas assinaturas. Um deputado que estava na sala se aproximou de seu amigo e pediu que ele o encontrasse em seu escritório assim que acabasse de assinar aqueles papéis. O senador cruzou a sala silenciosa e bateu na porta do deputado, um velho amigo seu. Entrou na saleta de decoração moderna.

-Meu querido! Quanto tempo não nos falamos heim?!

-Estava sentindo falta já. Faz uns meses que não aparece por aqui.

-É, pois é. Tive uns imprevistos aí, meu assessor estava em meu lugar. Bom queria saber se você ainda se interessa por alguns dos nossos trambiques?

-Mas como não? A amizade é para sempre não é mesmo?

-Claro que sim! Estou envolvido em um esquema lá da minha cidade, junto com o prefeito de lá. Precisamos de gente de peso nisso. Quer entrar?

-Quanto eu ganho?

- Muito meu caro, muito...


Alguns meses depois, os telejornais noticiavam que a polícia federal estava fazendo uma investigação sobre um esquema de corrupção entre senadores e deputados e o prefeito de Minas Gerais. Num apartamento de Copacabana no Rio de Janeiro, a mulher e seu marido almoçavam. O jornal da cidade estava sobre a mesa. A TV ligada falava sobre o esquema de corrupção.

- Arnaldo, esse jornal aí, não diz nada sobre o caso da Bruna e do Roberto?

- Tem uma notinha só, dizendo que o advogado do Roberto desistiu do caso.

- Mais nada?

-Não, só isso.

-Mas que jornaleco é esse? Eu quero saber se esse assassino vai pra cadeia ou não. Como são as coisas não é mesmo, Arnaldo, um crime horroroso desses e logo é esquecido pelas pessoas, pelas pessoas não, pelos jornalistas. Agora só se fala em Senado. Quem não sabe ainda que todos os dias tem corrupção pelo Brasil? Deviam dar importância a coisas mais interessantes para o povo.

Arnaldo concordou com a sua mulher, cansado de suas reclamações sem fundamento.



Em São Paulo, Roberto estava com novo advogado de frente para o juiz. Após cinco horas de julgamento, havia sido decretada sua prisão.



Seis horas da manhã. Rio de Janeiro. Arnaldo tomava café enquanto lia a manchete do jornal: “Após seis meses, Roberto é condenado a 27 anos de prisão”. Leu rapidamente o caderno de economia e colocou o restante dos cadernos na cama onde sua mulher dormia. Saiu irritado do quarto e se trancou em seu escritório. Era escritor e não entendia como fora se casar com uma mulher tão alienada e ingênua.



Oito da noite, Bahia. Dona Maria cozinhava e gritava com seus três filhos que não paravam de brigar uns com os outros. O feijão estava cozido quando seu marido entrou pela porta, bêbado. Seu Joaquim começou a discutir com a mulher sem razão. O álcool penetrava na desgraça daquela família havia alguns anos. A pobreza se alinhavava pelas paredes da pequena casa. Dona Maria, sabendo da rotina de sua vida, colocou a comida no prato para seu marido e mandou os meninos irem se deitar. Joaquim deu a primeira colherada na comida e urrou reclamando do gosto. A mulher retrucou com medo e logo sentiu a primeira bofetada no seu rosto já machucado. Os meninos estavam deitados no quarto, ouvindo o choro e os gritos de sua mãe enquanto o pai deles a espancava.



Oito da manhã. O sol estava alto na grande São Paulo. O ritmo frenético dos carros prenunciavam o novo dia que estava por vir. Na redação do jornal, os editores decidiam as manchetes de seus respectivos cadernos. A economia crescia pouco a pouco. Um atentado terrorista matara 500 pessoas no Paquistão. A rede de corrupção entre Brasília e Minas não tinha um desfecho ainda. A nova moda de inverno.


A cidade continuava a mesma. O Brasil continuava o mesmo. Nessa vida que tudo é tudo e nada é nada.



1 de agosto de 2010

O "Limiar"

Seus olhos demoraram a se acostumar com a cor inusitada do local onde se encontrava deitada. Quando recobrou os sentidos sentiu a dor que segundos antes de desmaiar presenciou. Ao seu lado havia um homem pacientemente a esperando acordar com um leve sorriso nos lábios. Adriana se levantou e dirigindo-se ao homem de terno cinza escuro perguntou-lhe:


- Desculpe-me, mas o que exatamente aconteceu comigo? Onde estou? Por que minha blusa está suja de sangue?

- Adriana, sei que essa notícia vai ser difícil para os seus sentidos e, também sei que muito provavelmente não a aceitará. Mas você está morta, esse sangue aí na sua blusa foi de um tiro que levou ao ser assaltada quando saía do trabalho.

- Que? Ah você só pode estar brincando! Onde está o purgatório? Os anjos? E Jesus? Cadê?

- Na verdade, você está numa espécie de purgatório que se chama Limiar. É aqui que você será “julgada”. Mas antes de ser julgada, você terá a chance de poder solucionar todas as dúvidas que teve em sua vida e que não puderam ser respondidas ou esclarecidas...

- Quer dizer então que eu morri, num assalto, e agora estou nesse lugar com você e tenho o direito de poder saber sobre todos os meus questionamentos. Ora então vamos lá, a mais óbvia das perguntas: por que eu morri tão cedo? Só tenho 26 anos, ou pelo menos tinha...

- Calma, antes de eu responder essa pergunta, que deverá ser a última de todas, tenho que esclarecer o seguinte: depois de respondidas todas as suas questões você terá um tempo para organizar todas as ideias em sua cabeça e logo em seguida se esquecerá de tudo que ouviu e presenciou nesse lugar, nem ao menos se lembrará de mim ou que esteve aqui.

- Mas que coisa mais insana isso! Se for desse jeito nem adianta saber!


O homem de terno parou um instante e nada disse. Adriana cruzou os braços e se reteve a pensar. Estava irritada e confusa, mal sabia que lugar era aquele e o que significava todo o resto. Começou a pensar em sua família, nos seus amigos, cachorro, trabalho, namorado, sonhos, projetos, desejos que tinham ido embora com o sangue que manchava sua blusa bege...


-Tá legal – disse Adriana – você me responde tudo e depois o que acontece? Como é esse julgamento?

- Responderei a todas as suas perguntas, mas você não será julgada exatamente, irá acontecer exatamente aquilo que acreditava que iria acontecer depois que morresse.

- Tudo bem. Me responda: por que meu cachorro foi atropelado quando eu tinha 8 anos? Por que minha família mudou tanto de cidade? Por que demorei para fazer amigos fixos? Por que meu último namorado me traiu com a vizinha? Por que não consegui a promoção em meu trabalho que tanto queria? E afinal, Deus existe? Ele é você? Existe o inferno? Ou o céu? E as recompensas que os justos mereciam? Onde elas estão? Aqui? E depois disso vem o que? Isso está me angustiando sabia? Todas essas perguntas só foram acumulando ao longo do tempo e de repente, quando nem ao menos tive tempo de pensar ou de aproveitar mais a minha vida, um revólver tira essa oportunidade de mim? De eu poder viver um pouco mais? Mas que diabos é isto?


O homem a esperava pacientemente com o mesmo sorriso no rosto. A esperou desfiar todos os nós de sua angústia. Quando ela terminou, ele respondeu:



- Adriana, quando disse que iria responder todas as suas perguntas eu não menti, porém não expliquei de que maneira as iria responder, e sei que depois que responder, você vai se irritar em descobrir a verdade, seja ela qual for. As respostas para todas as suas perguntas é uma só: há coisas que simplesmente acontecem por terem que acontecer de uma forma ou de outra. Não posso te dizer se o que aconteceu foi certo ou errado, justo ou injusto, mas se você ainda tem essas perguntas é porque você mesma não as encontrou e se você morreu cedo, me desculpa, o azar foi o seu.

- O que você está me dizendo? Como é que é? Você acha que eu fiz tudo porque eu quis? Você acha que matei meu cachorro atropelado porque queria isso? Você é maluco ou algo assim? Ou eu fiquei louca e vim parar nesse lugar?

- É você quem deve saber das respostas, foi você quem estava vivendo não eu. A resposta para todas as suas respostas é clara: eu não sei porque aconteceu tudo o que aconteceu com você, e nem nunca vou saber, quem tem de saber é você. E sabe eu odeio esse trabalho, odeio ser esse tipinho meio auto ajuda, odeio ... odeio por você estar aqui agora me enchendo!


Adriana olhava inconformada para o homem e insistiu mais uma vez:


- Ok, então por que eu morri? Essa você pode me responder? Já que eu morri e aparentemente vim parar nesse lugar...

- Sim essa eu posso com toda a certeza te responder.


O homem se aproximou de Adriana e cochichou em seu ouvido por alguns minutos o motivo de sua morte.

Adriana ficou tonta e desmaiou, acordou com seu despertador gritando ferozmente às sete da manhã. Era hora de acordar para ir ao trabalho novamente.