31 de outubro de 2011

Resignação

A luz cadavérica incendiava a porcelana manchada de cafés passados. O ambiente exalava o odor da bebida coada e servida. A mesa estava um pouco suja e melada. Os dois estavam sentados um de frente para o outro. Ela na ponta do assento da cadeira mexia na borda da xícara, muda, evitando o olhar magoado e esquivo. Ele a olhava fixamente enquanto esquentava suas mãos envolta do café posto.

- Não vai tomar? – ele perguntou.

Ela não respondeu. Olhou desajeitada para a parede ao lado, murmurou palavras silenciosas e engoliu seu sentimento enquanto desviava seus olhos para os dele.

Sua barba por fazer, os olhos verdes destacados, o cabelo louro respingado de chuva, a camisa marrom desajeitada em seu pescoço.

- Vai esfriar – ele insistiu.

- Eu sei. Está muito quente ainda... – ela afirmou com um tom ligeiramente frio para a sua voz embargada.

Ele não mais falou. Resolveu beber seu café e deixar que o tempo esfriasse o dela. O que se passou foram alguns minutos de pura encenação de movimentos e sons desconexos: o garçom que ia e vinha das mesas, a TV ligada ao fundo, o ar abafado que amoleciam os ânimos, uma risada excessiva ao lado, o papel amassado da nota fiscal, a porta que abria e fechava, a cidade que gritava agoniada lá fora.

Ele terminara seus goles, deixando uma fina linha de líquido preto emoldurando o fim do copo.

Ela decidira parar de esculpir a porcelana branca com os dedos e, de um único gole, tomou sua primeira metade. Sem levantar os olhos, ela torceu os lábios, enrugou a testa e num misto de satisfação e resignação, disse:

- Esfriou. Essas coisas sempre esfriam rápido demais.

Então inclinou a cabeça postando seu olhar caído nele.

Ele continuava a observá-la imóvel, enquanto o amargo transpassava e ganhava gostos diferentes no paladar de cada um.

27 de outubro de 2011

Sem previsão

São oito e meia da manhã de um domingo de chuva. Essa chuva que permanece há dois dias; de forma, que o asfalto, os telhados e os nossos corpos não puderam se secar ainda. Depois de quase vinte e quatro horas acordada e com o álcool ainda fluindo em meu corpo, decido não entrar em casa e, munida de uma caderneta, um lápis com desenhos de fantasmas, uma boina e uma vizinhança muito tranquila e remota, decido por escrever essas frases soltas, se não umas notas, sem previsão de serem compreendidas.


Resolvo, então, por me sentar no ponto de ônibus e escrever sobre o que vejo (e se vejo). A chuva não é tão intensa e meus braços podem se acomodar melhor. Há um vômito perto de onde estou escorrendo pelo buraco da calçada, assim como folhas mortas, sacos de salgadinhos vazios deliberadamente jogados no chão e buzinas solitárias das quais não estão acostumadas com a minha presença ali.


É a primeira vez que me sinto pertencente ao meu bairro, à minha rua, ao ponto de ônibus descascado que possui uma goteira no teto e que a chuva teima em gotejar sobre meu joelho. Estou só nesse lugar, mas ouço a televisão da padaria, as pessoas conversando enquanto tomam um café mal passado, os roncos dos carros e caminhões que acordam nas esquinas próximas.


O que me leva a escrever (novamente a mesma pergunta das linhas anteriores)? Talvez a embriaguez que se esvai ou o total anonimato do momento. Acredito mais, ser o total desprendimento do instante; a não obrigação de chegar em casa num horário marcado ou a falta de cronologia do tempo pela ausência das sombras do sol.


Mas a verdade é que quando desci do ônibus deparei-me com uma briga entre cães. Aquelas brigas antropofágicas (para usar um termo recorrente na semana) dos quais, um quer “traçar” o outro e o mais bonito deles quer uma briga desnecessária. Por conhecer três dos cães que ali estavam (por serem os cães que moram exatamente naquele ponto de ônibus de outrora e, que não causam tumulto a ninguém), pus-me como defensora alcoólica deles. Expulsei o briguento com resmungos e frases em inglês enquanto o garanhão continuava em sua investida reprodutiva gay. Expulsei o briguento, sabendo que o dono estava na padaria com seu café mal passado; gritei e insultei o cão, com o proposito de amargar mais ainda o café do mesmo. Parei o trânsito de dois carros com esse entrave e a chuva se prolongou, fazendo aquele mesmo asfalto mais sedoso e a paisagem mais sedutora.


O motorista do ônibus (que há meia hora me deixava no mesmo lugar que me encontro agora) certamente deve ter achado algo de errado em tal cena. A chuva ou o chuvisco (como queiram) é tão denso que uma névoa branca se forma, fazendo sumir a briga dos cães, a minha boina revolucionária dos animais e minha escrita a lápis numa caderneta minúscula.


NathalyaG, Ribeirão Pires – SP, 22 outubro de 2011, 09:18

13 de outubro de 2011

O acender de luzes

Era fim de tarde azul. Não um azul qualquer, destes que você vê no céu todos os dias; mas, um azul lacrimoso, com nuvens amontoadas pelo azul. Pinceladas em círculos, com notas de púrpura rosa que dançavam no céu. Essas pareciam àquelas nuvens.

Um desses fins de tarde que tingem tudo de azul, até a nós mesmos. Essas tardes que chovem, reaparece o sol escondido, secam-se as poças, as nuvens ainda permanecem, os pontos fixos de laranja neon acendem-se nos postes e seus reflexos amanteigados estão nas portas.

Enquanto ficamos sentados esperando esse azul nos filtrar e nos transformar, ouvimos os carros que voltam para as suas casas, uma mangueira que lava a calçada, a televisão que nos conta a novela.

Eram umas seis horas e o cão latia novamente, a criança gritava com seu amigo em alguma casa da esquina em que nossos olhos podiam atingir com a visão tranquila. O laranja era duro nas ruas e paredes, duro de tão laranja.

O azul era quase aquele azul da madrugada que se esvai dando lugar à manhã, porém, era o inverso: o dia que partia dando lugar a uma madrugada que ainda não havia chegado.

Comemos o pão e bebemos o café tostado. Vestimo-nos e nos despimos e, aquele azul continuava em nós. As nuvens se amotinavam no horizonte de roxo meio cinzento. As luzes eram acesas nas casas, mil quadrados amarelecidos; flores que eram brancas, agora, eram amarelas pelo laranja das luzes dos postes e seus galhos verdes mais se pareciam com aquele azul oceano que nos faz perder o juízo por aí. E pouco a pouco tudo era amarelo-azul. Tanto azul em amarelo. Tanto me fazia lembrar Van Gogh. Tanto me lembrava ele.

1 de outubro de 2011

O amassar

E como dói. Dói em pensar a ausência do não lugar, do não acontecimento.

Dói que mal posso pensar; mal posso olhar, não posso...

Nada. Paraliso-me no tempo, o ambiente me diminui, me contamina com sua solidão de pessoas. Olho, e tudo que vejo, é a minha angústia em espelhos físicos, é minha aflição viva em meu corpo que tamborila no espaço sereno. Ando numa espaçonave solta na gravidade. A grave palavra que emoldura o rosto que brilha no horizonte sem cor de meu universo.

Verso quebrado em três sonetos mal feitos. O mal da minha cara lambida de cansaço vivido. O ouvido do inferno que tudo escuta de minha alma ancorada numa calma boba de um alaranjado pôr do sol.

O pôr da minha morte em cada sol da manhã orvalhada de minha face. Facetadas, mil luzes em estrelas cadentes das nuvens de Monet. Viajo no momentâneo Van Gogh de minha loucura quieta num robusto copo licoroso. O busto da minha estátua de pedra mole e lânguida; a estátua da minha liberdade idealizada, apodrecida no musgo do contorno do gesso. Música silenciosa da cidade dormida, calada, empoeirada de ossos em osteoporose. Doença equilibrada de fumaça viciosa; grossas cortinas e colares que prendem o meu pescoço em suas mãos. Mãos de unhas bem cortadas, na pálida digital que nunca me toca, mas me caleja de pesares e sonhos pervertidos de enclausuramento mental.

Mente, cérebro, cinzento pensamento do castelo de minha felicidade; o jogo de cartas na mesa de bar. A mesa melada de bebida amanhecida em várias noites. Relâmpagos noturnos que fervem meu metabolismo, matam os mil neurônios que pensarão numa alternativa de escapar daqui.

Corro e fujo daqui, permeio meu próprio círculo metafísico, encontro a religião e a teologia do olhar perdido no negro da voz da lua. A lua de minha infância, que suas sombras eram deuses da paz, sua luminosidade girava meu espírito, o espírito da inspiração. A lua que casava-me de véu pela rua vazia da vizinhança. A noiva viúva do dia, do sol alaranjado no horizonte criminoso de minha visão. Laranja cáqui de meu estado, o Estado boquiaberto do meu ânimo, a pomba lenta da rodoviária, o teto que bloqueia o mesmo sol e só deixa o cheiro da urina seca penetrar meus pelos e cabelos.

Aquela luz cibernética que me leva em sofreguidão de mil mundos num só. Leva-me veloz na calçada suja dos homens que comem o arroz azedo dos sacos plásticos. As centenas de narizes espremidos no vidro velocímetro que me leva para casa. A morada dos bueiros e do luar cravejado de humanidade. O sexo guiado em cartilhas de burra modernidade fotografada. Fotografo-me na lente que memorizo ser minha vida minha. Vida-morte livre-presa na calada noite de hoje.

NathalyaG 30, setembro, 2011 – 22:02 – São Paulo