30 de abril de 2014

Furtar-se

Letícia recostou-se sobre a parede sentindo o gelado do concreto. Respirou algumas vezes. Andaria por toda a Lapa. Olhou para os Arcos acima, pensou ter visto uma fagulha de sol, mas seu corpo era todo cor de sépia opaca, quase sem calor. Tomou fôlego e coragem. Esvaziaria todos os passos das calçadas, rondaria seus sentimentos... Mem de Sá, Riachuelo, Lavradio... caíra na Praça da Cruz Vermelha onde a graça dos mendigos vinham bisbilhotar sua dor.

Ah! Mas como eram pequenas aquelas ruas!
Quem nunca perdeu um coração esfomeado pelas esquinas da cidade?

Quantas casas ausentes!
Perdera seu coração. Alguém comeu-o por engano, como quem percebe sua luz num campo escuro.

Pobre coração! Era preferível viver perdido sob o cal do passado daquela terra do que ser digerido por um incauto.

Letícia, que agora tinha um nome, também tinha um senhor, alguém a quem sempre servir e esperar. Estava doente e andava desnorteada, como mariposas que rondam uma lâmpada acesa em noite quente. Sentia-se como uma escrava do vazio, da dor e do sorriso bonito.

A moça afoita e singela romperia alucinada por qualquer viela sem ter razão aos seus pensamentos e nem paz aos seus calcanhares. Foi perder a sua vida num coração.

Ela era agora, puro amar em amor.
Mas, somente se, assim o quisesse.




Natalia Iorio


Abril de 2014.

13 de abril de 2014

Lucidez



Da janela fechada
nada se ouve,
nada se quer,
nada se digere.


Da janela movediça,
o vidro se quebra,
a memória se finda,
a fotografia se apaga.


Daquela janela,
nada se pode escutar
e tudo se emoldura em cor,
o mais se perde num beijo,
o ar fresco vira movimento.


E o tempo,
aquele tempo,
perdura...


                        Continua...
                                                  

                                                 Feito janela
                                                                                

                                                                                         ...




Natalia Iorio

Abril de 2014.

3 de abril de 2014

Imaginário

Certa vez
comprei-lhe uma camisa
amarela com pássaros pretos...


Certa noite,
desabotoei-a e fiz
todos aqueles pássaros
voarem...


Passearam pela
minha boca,
meus dedos,
minha barriga,
pousaram no meu baseado
de três da manhã
até descerem...


Desceram a saia,
a calcinha,
a pele,
a umidade,
o cheiro...


Certa vez,
eles escorregaram,
tombaram no chão,
ajoelharam aos meus pés,
mortos...


Logo,
ressuscitaram.



Natalia Iorio

Rio, abril de 2014.