Mas era um pontinho preto de asas abertas em contraste à
lisa abobada do céu. Um pequeno ponto que movia-se veloz.
Mais abaixo, homens e mulheres gritavam em esporádicos momentos
de fúria e festa. Era assim que se dava no mundo de edifícios e concreto, semáforos
e normas de trânsito, sirenes e conflitos, bancos e empresários. Aqui mais
abaixo, são os diversos pontinhos humanos que se movem em ruas e avenidas
esburacadas e cansadas. Até as avenidas se cansam. Cansamo-nos em demasia
esburacada.
Nesse mundo alguns poucos se revolucionam, giram em torno de
suas existências, atam fogo numa clama simbólica aos demais. Outros tantos milhões
são cifras moldadas em discursos prontos, enformados, calculados, retorquidos,
curvados num cajado enferrujado. Qualquer palavrão de ruptura se
torna a heresia a ser queimada no inferno dos “Justos”.
Mais abaixo ainda,nos subúrbios de ouro e terra, temos um
montante de carniça enjaulada em cofres e mais cofres, jaulas de ferro e
liquidez, o capital que escoa cavernosamente pelo ralo do mais poderoso, do
mais bem apessoado, daquele amigo do amigo, do parente contente que assobia
dando um saudoso bom dia a secretária da periferia.
Nos túmulos do silêncio dos escritórios lacrados de bom
prazer e bom ser pessoal, vemos o liquido pecaminoso de toda uma história de
corrupções, devastações, amolações. Pavores e gritos que fiquem para o lado de
fora, fiquem nas ruas que devem ser esvaziadas pelo fluxo constante. Fique a periférica
de fora. Fique a olhar de longe o centro, o poder, a torre de vigilância da
qual não se pode tocar, cheirar, sentir, contestar.
Que fique toda a massa circulante andando de um lado a outro
sem nunca chegar num canto de alegria, que a paz e o descanso sejam, apenas, um
destino a se chegar, mas que nunca se chega.
Aqui embaixo, nem Deus gostaria de estar. Aqui Deus seria
devastado e expulso. Não teria lugar para Ele. Deus não poderia pegar em
machados e pedras, não poderia causar destruição nem caos. Deus seria um
convidado a ver de longe o que se passa. E bem de longe.
Fique Deus naquela abobada tranquila e celeste, fique quieto
e na paz de deus que nunca se vê por aqui.
Fique a ouvir os tiros e protestos, a massa que se move
junta e que se solidifica no movimento da reivindicatória. Nós, as pessoas,
aqueles pontinhos humanos, que mais de uma vez gritam e cantam, fazem festa a
desgraça, fazem música os grilhões, fazem morte e dor a vontade de liberdade.
Que Deus possa ser testemunha de um mundo que nunca irá decair,
nunca se pronunciará o fim do mundo nem o apocalipse. Fique na paz celestial
enquanto nós damos conta da baderna, promovemos um motim, pintamos cartazes de
ocupação e de revolta.
Nós ficaremos em paz enquanto a voz não for silenciada,
enquanto os passos, mesmo que presos, puderem se rastejar naquele concreto áspero
de desigualdades, enquanto a democracia incrustada de jóias caras dos grandes proprietários
e governadores epiléticos estiver na alcunha de todos os povos, enquanto a
encruzilhada da macumba pagã da luta de infiéis e traidores ainda for a voz
mais alta de todas. Encontraremos paz.
Preferimos a lama, o pântano, a tempestade, as pragas e
doenças. Preferimos a desordem e a inquietude, o errado ao certo, o escândalo ao
silêncio. Preferimos o oposto que nos levará ao posto de sermos o que deveríamos
de ser. Humano político, social e cultural. Humanos como humanos devem ser. Humanos
como seres em liberdade, seres de alegria e vontade, seres de boca e
olhos, ouvidos e tatos.
Seres humanos. Milhões de pontinhos. Milhões de céus. Milhões
de Deuses.
Somos os Deuses de todos nós, somos os Deuses que podemos o
que quisermos, somos os Deuses que se tivermos forças fazemos. Somos Deuses num
céu cheio de nuvens.
As nuvens que podem parecer sólidas e estáticas, mas são feitas
de água e liquidez, como o concreto e os edifícios. Líquido. Passageiros, se
assim o quisermos.
Deixe que façamos as nuvens chover.
Enquanto ainda formos Deuses e céus, água e desordem teremos
a força e a vontade de sermos milhões de pontinhos com asas a voar num céu
celeste e azul.
Pontinhos de pássaros-Humanos, nuvens-chuva,
Deuses-liberdade.
NathalyaG – 17/05/2012 – 12:03