20 de outubro de 2010

Faca na caveira

“O ser humano é uma dificuldade.” Foi com essa frase que comecei o meu domingo a caminho do cinema. Uma garoa fria caia sobre os trilhos do trem quando o senhor na minha frente disparou essa afirmação tão incômoda e sintética.


Tropa de Elite 2 é melhor que o primeiro filme, não apenas por contar com uma direção mais apurada, um roteiro mais intrínseco e uma produção grandiosa e sim, porque o filme trouxe um movimento e uma energia a mais para a população. A verdade é que a “dificuldade” humana foi retratada com maestria por José Padilha e pela grande dramaticidade do elenco.


No primeiro filme o então, Capitão Nascimento, narrava a vida do tráfico e do combate a ele, dos trâmites da polícia corrupta e da honesta, do duelo de lidar com o trabalho e a vida íntima e familiar. Em Tropa de Elite 1, sentimos o fervor da violência e da irracionalidade de certos intelectuais que não conseguem enxergar amplamente a realidade. O vigiar e punir de Foucault é abordado e serve de bordão para os tapas na cara, os gritos e as torturas com sacos plásticos. No segundo filme encontramos o inverso, o Capitão se faz Coronel, e Nascimento renasce e se constrói como heroi que tem que entender seu papel na sociedade, entender a complexidade do “sistema”, aceitar seus erros e encarar de vez a fatalidade e a missão do vigiar e punir.


O antigo Nascimento é um anti-heroi, Capitão de uma polícia violenta, mas que sobe o morro para resolver os problemas; ele é o anti-heroi heroi da sociedade, porque transfere para suas atitudes e palavras o nosso desespero pela impunidade do tráfico, pelas mortes e consequências que as drogas e seu mercado ilegal imprime na população. Pela morte, Nascimento trás a justiça e a tranquilidade, mesmo que seja para garantir o sono do Papa.

Uma das grandes críticas que se fez na época do lançamento do primeiro Tropa, foi justamente a ineficiência de uma polícia, mesmo que honesta, quando o Estado não garante a sobrevivência digna da população, quando o poder não investe em saúde, educação, saneamento e segurança. Qualquer polícia ou forma de repressão não contêm sozinha o mal, as mortes, os tiros e as torturas de estudantes com consciência social, apenas agrava mais a dificuldade de conseguir encontrar o fio condutor ou, senão, os vários fios condutores que geram os traficantes, a corrupção de milícias e a violência amplamente difundida nas cidades.


No segundo Tropa, o Coronel Nascimento tem de se reconstruir quando percebe que seu passado já não é mais válido para a realidade em que vive. Os inimigos aparecem, mas o verdadeiro inimigo não é revelado tão facilmente. O personagem renasce e se torna mais maduro, percebe as falhas de um governo cheio de buracos de corrupção e manipulação, onde tudo pende para um lado, para uma polarização do poder.


A verdade parceiro, é que a vida humana é causa, finalidade e meio da dificuldade; somos moldados, corrompidos e lapidados pela complexidade do efeito humano de viver, das sociedades, da impregnação da cultura em nossos hábitos e costumes. O caos de nossas vidas e o mergulho no incompreensível nos torna homens sociais e, a falta de uma visão mais ampla e dinâmica dos movimentos e interações que acontecem a nossa volta, só pode ser consequência desse sistema de "dificuldades" que produzimos diariamente.


É isso que o filme, em seu caráter mais geral, aborda: o circuito ininterrupto de informações, acordos, desacordos, manipulações, infiltrações, grampos, tiros pela culatra, mortes de inocentes, votos, politicagem, “bandidagem”, quadrilhas, poder, vozes e caminhos.


O caminho de Nascimento é a sombra eficiente de uma tragédia de Shakespeare, ele se move rumo ao objetivo de enfrentar o "sistema" de frente e perde parte de sua intimidade; é o heroi que engloba o grito da sociedade em chamas de vingança pela falta de justiça e ética. A pessoalidade da luta toma tons azulados e frios, a música torna-se mais tensa, os tiros e socos mais avermelhados, mas o heroi caído continua em seu ser, golpeando a corrupção, os xingamentos, as compras de votos e os políticos de gravata amarela que sorriem sem parar frente às lentes da mídia.


A sombra heroica de Nascimento nos entorpece quando vemos em seu rosto de expressão marcante, em seus cabelos grisalhos e em seu olhar caído e profundo a maquiagem da realidade, que disfarçada nos transgride na dificuldade de a entendermos. Ele é o corpo individual representando a sociedade como um todo e, quando assistimos o real diante de nossos olhos sem censuras e borrões, nos confundimos ainda mais pela incapacidade de lutar contra o grande monstro do Estado corruptível.


A desilusão perpassa por nossos pensamentos e ânimos, nos obriga a lembrar de casos esquecidos e jamais resolvidos, nos lembramos de CPIs e mensalões, de balas perdidas que matam nossos filhos, pais, irmãos e colegas, que nos leva invariavelmente para as alamedas do vício e das drogas.


Nossos olhos caem e se escurecem assim como a expressão de Nascimento, nossa postura se encurva com o peso do desânimo e da irresponsabilidade de nosso sistema político empoeirado e enlameado, nos esforçamos para dar o nó na gravata e engolir a seco os nós de ira e tristeza diante da realidade imatura e dura de nosso país.


O fim do filme nos leva para o sonho cinematográfico de realizar coisas irrealizáveis: José Padilha prende políticos corruptos, faz uma limpeza política no Senado, dá voz aos injustiçados e coloca o Estado como deve ser: limpo, claro, justo e ético. Por mais que duras críticas pesaram sobre esse desfecho, não acredito que foi ingenuidade e generalidade com o fim do filme; acredito mais, que Padilha honrou com a missão do cinema e de qualquer expressão artística: trazer a esperança e levar um movimento de reflexão e consciência para todos os espectadores.


Diante da esperança filmada e reiterada num sucesso de bilheteria com poucos dias de exibição, a bandeira brasileira continua enrolada sobre seu próprio mastro esperando as vozes silenciosas que irão rondar o novo governo, o seu verde e amarelo se esconde tímido e envergonhado de levar a cor da mentira e do roubo para o alto dos céus, ela se emudece diante da sociedade que caminha apressadamente abaixo de sua sombra emoldurada pelo sol escaldante e ardido da miséria, da fome, da falta de educação e saúde e de leis dignas de seres humanos, mesmo que sejam seres humanos dificultosos.


E falar de bandeira sem falar da bandeira do Bope seria um certa injustiça. Que a faca esquarteje a caveira do corpo político do Brasil, que os fuzis e pistolas sangrem as injustiças de todos os órgãos e instituições depravadas e deturpadas pela mentira e pela indignidade de homens tiranos, que as torturas de sacos plásticos asfixiem a consciência perversa e escrota do “sistema”, que os cabos de vassoura empalem os políticos e candidatos que esmiúçam suas palavras diante de palanques e refletores incrédulos e surdos quanto ao sofrimento das pessoas.


Faca na caveira do planalto, do senado, das prefeituras, dos policiais corruptos, dos traficantes e de todos que contribuem e movimentam a política e a justiça desse país em forma de molecagem e de cobiça ridícula. Que possamos vestir de uma vez por todas a farda preta da mudança e da dignidade em nosso Brasil, e que a bandeira verde e amarela não precise mais se esconder em seu mastro.






Um comentário:

  1. Náh, eu concordo plenamente com o que vc diz, o governo merece uma limpeza geral feita por pessoas fortes e de valores como o Capitão Nascimento. Acredito que o filme torna as pessoas mais conscientes da situação atual do país e é essa consciência que pode dar força para a mudança. Gostaria de dizer que adorei a forma como vc apresentou o capitão Nascimento fazendo um paralelo entre a personagem e o espectador. Seu texto é muito bom, assim como o filme, que me deixou extasiado rsrsrs parabéns

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